Sistemas integrados, plantio direto e fixação biológica de nitrogênio e fósforo são exemplos concretos que comprovam o bom desempenho dessas técnicas no Brasil
As tecnologias denominadas poupa-terra estão entre os principais destaques da agricultura tropical brasileira pela capacidade de aumentar a produção de alimentos em áreas já utilizadas para cultivo, evitando desmatamento de florestas e áreas de matas nativas. Exemplos concretos dessas tecnologias que já ocupam milhões de hectares em todo o Território Nacional, movimentando bilhões de reais, foram o tema da palestra de abertura do terceiro dia de realização da Semana Internacional de Agricultura Tropical (AgriTrop 21), proferida pelo diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Guy de Capdeville. O evento, promovido pela Embrapa e pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) reúne mais de 1.000 inscritos entre os dias 22 e 26 de março e está sendo transmitido nas plataformas digitais das duas instituições. Mais informações estão disponíveis na página do AgriTrop.
Uma das principais vantagens das tecnologias poupa terra, na visão de Capdeville, é que atendem a produtores de todos os portes: pequeno, médio e grande. “Trata-se de modelos extremamente democráticos e que têm alcançado resultados impressionantes em todos os biomas brasileiros”, complementou. Em breve, a Embrapa vai lançar uma publicação sobre essas tecnologias.
O diretor apresentou exemplos de tecnologias poupa terra já consolidadas no Brasil e que podem ser expandidas para outras regiões da faixa tropical do globo. Entre elas, destaca-se os sistemas ILPF, que integram lavoura, pecuária e floresta em uma mesma área. Esses modelos integrados podem utilizar cultivo consorciado, em sucessão ou em rotação, de modo que haja benefício mútuo para todas as atividades. Em 2015, ocupavam uma área de aproximadamente 11 milhões de hectares no Brasil. Em 2021, esse número saltou para 17 milhões.
Os sistemas ILPF aliam produtividade e benefícios ambientais, especialmente para a mitigação da emissão de gases de efeito estufa (GEE). “São modelos de produção que se adaptam com facilidade a todas as regiões brasileiras e têm sido bastante importantes para o aumento de renda e geração de empregos na região Nordeste do País, a partir do consórcio de macaúba com outras culturas”, explicou.
As tecnologias poupa-terra têm tido impacto significativo na exportação de frutas. Dados de 2018 apontam que a produção mundial de frutas é de cerca de 930 milhões de toneladas em pouco mais de 80 milhões de hectares. A contribuição brasileira é de 42,4 milhões de toneladas, ou seja, 4, 6% do total em uma área 2,5 milhões de hectares. Para cada hectare cultivado com frutas, dois empregos são criados, totalizando cinco milhões. As principais tecnologias sustentáveis utilizadas na produção de frutas são: produção integrada, gestão da cobertura do solo, manejo de água e nutrientes, controle de pragas e doenças e gestão pós-colheita.
Segundo Capdeville, a estimativa do efeito poupa terra na produção de frutas para exportação, de acordo com dados do IBGE, aponta para um aumento de produtividade de 64% entre a década de 1990 e 2018. “O que mais salta aos olhos é a área poupada em 2018, que foi superior a 900 mil hectares”, enfatiza. O cultivo de 11 fruteiras – laranja, banana, melancia, manga, limão, uva, maçã, melão, tangerina, abacaxi e mamão – corresponde a aproximadamente 38% da área cultivada no Brasil, que é de cerca de 2,5 milhões de hectares.
O diretor ressaltou também o impacto das tecnologias poupa-terra na produção de soja. Na safra de 2019/20, foram produzidos 251 milhões de toneladas de grãos em uma área de 65,8 milhões de hectares. A contribuição da soja para esse montante foi de 120,9 milhões de toneladas em 36,9 milhões de hectares, o que representa uma produtividade de aproximadamente 3 kg/hectare. A soja responde por 3,6% dos empregos gerados pelo agro no Brasil.
“Se nos reportarmos a década de 1970, sem a tecnologia existente hoje para produção de soja no Brasil, para manter esses índices de produtividade, seria necessário expandir a área em 195%. Com a ciência e as tecnologias poupa-terra conseguimos preservar uma área de 71 milhões de hectares”, complementou Capdeville.
O mesmo se deu com o algodão. Entre os anos de 1976 e 2019, a produção cresceu de 1,2 milhão para 4,3 milhões, enquanto a área foi reduzida de 4 milhões de hectares para 1,7 milhão. Esse resultado é fruto de várias tecnologias, entre as quais se destacam: cultivares melhoradas geneticamente, plantio direto, que abrange técnicas sustentáveis de manejo do solo, e o cultivo do algodão em sistemas ILPF, entre outras.
No geral, o uso de tecnologias poupa terra na agricultura nas últimas quatro décadas levou a um salto de produtividade de 280 Kg/ha para 2.600 Kg/ha, preservando 13,3 milhões de hectares.
“Esses números mostram claramente que sem tecnologia não há sustentabilidade. E para levar a ciência ao campo, contamos com o apoio dos produtores brasileiros, que são altamente receptivos aos avanços tecnológicos”, concluiu o diretor da Embrapa.
Digitalização é sinônimo de democracia no campo
O professor da Universidade Federal de Lavras (Ufla), Paulo Leme, endossou a afirmação de Capdeville A aplicação de tecnologias agrícolas, sociais e digitais é fundamental na construção de mercados sustentáveis no Brasil. A agricultura 4.0 veio para revolucionar e democratizar a agricultura, acredita Leme.
Prova disso é o café, cuja produção quadruplicou nas últimas cinco décadas, de forma sustentável, com redução de área plantada. No início do Século XX, os cafeicultores produziam cerca de sete sacas por hectare. Hoje, esse número saltou para 30 e até, 60, em casos de produtores mais tecnificados.
Além da sustentabilidade, o diferencial no caso do café é a qualidade. “A cafeicultura familiar no Brasil é um exemplo para o mundo”, ressaltou o professor, lembrando que isso se deve à alta produtividade (tecnologia), rentabilidade (associativismo e cooperativismo) e diferenciação (cafés especiais e certificação). Ele citou o projeto “Ufla pelo comércio justo”, que certificou 18.500 famílias produtoras de café e laranja
“A cafeicultura tem garantido à agricultura familiar qualidade de vida no campo e, acima de tudo, dignidade. As tecnologias sociais e mercadológicas perpetuam o trabalho das famílias e atraem jovens para o campo”, ponderou.
Agenda global para a pecuária sustentável
O representante da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) Eduardo Arce falou sobre a Agenda Global para Pecuária Sustentável (GASL), criada pela instituição para atender a demandas de governos mundiais nos anos 2000, por mais sustentabilidade na produção de gado de corte e leite.
Apesar de ser uma atividade de extrema importância socioeconômica para os países e para a alimentação mundial, a pecuária é frequentemente associada a danos ambientais, como por exemplo, o aumento de 14% na emissão de gases de efeito estufa (GEE), além do potencial de desmatamento, entre outros.
A GASL é uma agenda aberta e envolve 177 parceiros públicos e privados para fomentar a sustentabilidade na pecuária. Desses, 26 são da América Latina, incluindo a Embrapa e o IICA. Segundo Arce, o papel dela é atuar como catalisadora dos parceiros na conversão dos sistemas de produção para modelos mais sustentáveis, como os que usam ILPF, em parceria com a Embrapa.
Ele lembrou a importância da Cúpula dos Sistemas Alimentares, a ser realizada em setembro em Nova York, que faz parte dos objetivos do AgriTrop. Os resultados da GASL serão apresentados no evento mundial.
Intensificação da agricultura e irrigação
O engenheiro agrônomo Durval Dourado, professor da Universidade de São Paulo (Esalq/USP) apresentou dados sobre a capacidade de intensificação (para uso na agricultura) e expansão (para uso da pecuária) da irrigação no Brasil, com base em dados em estudo elaborado pela área de políticas públicas da Esalq feito com informações de vazão de recursos hídricos superficiais da Agência Nacional de Águas.
De acordo com o levantamento, o Brasil tem potencial para expandir a área irrigada em 15,5 milhões de hectares (ha), sendo 8 milhões para a agricultura e 7,5 milhões de ha para pecuária.
Atualmente, o Brasil possui 5,3 milhões de ha de área irrigada. Se utilizada toda a área identificada no estudo, o país passaria para 20,3 m ha. Conforme explica o professor, considerando que em áreas irrigadas é possível obter duas safras, os 20 milhões há seriam equivalente s 40 milhões há. O cálculo não inclui a área de cana-de-açúcar fertirrigada (2,9milhões há)
“O Brasil tem potencial para atender a demanda mundial com expansão e intensificação da agricultura irrigada associada com outras estratégias. Em 2016, tínhamos 7 bilhões de pessoas no mundo e o Brasil era responsável por produzir alimentos para cerca de 1,2 bilhão de pessoas, mas a FAO nos passou a incumbência de produzir 40% da demanda que vai haver de produção de alimentos devido ao aumento da população para 9,8 bilhões de pessoas em 2050”, disse.
“Se nós pegarmos 40% de 2,8 bilhões, isso significa 1,12 bilhões. Se somarmos 1,2 bilhão com 1,12 bilhão, o que vamos produzir a mais, vamos ter que ser responsável para atender a demanda de 2,32 bilhões de pessoas. Uma das estratégias para isso vai ser a agricultura irrigada”, explicou.
No total, o Brasil possui 851 milhões de hectares, dos quais 66% com vegetação natural, 22% sendo usada para pastagem, 9% com agricultura, apenas 1% com silvicultura e 2% com outros usos urbanos e infraestruturas. “A ideia é e aumentar a área agrícola irrigada e expandir o uso pela pecuária sem desmatar um único hectare”, disse.
Ele explica que foram consideradas áreas com aptidão agrícola, havendo disponibilidade de água superficial, mão de obra especializada, infraestrutura, energia, (transporte e navegação), capacidade de armazenamento e conectividade.
Normalmente, o Brasil adiciona aos sistemas produtivos algo em torno de 250 mil ha por ano, mas a capacidade instalada da indústria chega 500 mil ha por ano. Se nós fizermos a conta, teríamos algo como 31 anos para atingir esse 15,5 milhões de hectares”, disse.
Pandemia abre caminho para produção de frutas orgânicas
A pandemia tem sido uma oportunidade para os produtores de frutas orgânicas, disse Alberto Vilarinos, da Embrapa Mandioca e Fruticultura, que falou sobre Fruticultura Orgânica: sustentabilidade de valor. “As pessoas estão mais interessadas em alimentos mais saudáveis que reforcem o sistema imunológico e também em produções mais sustentáveis”, disse. “Então, as frutas orgânicas tem tudo a ver com o alimento do futuro.
Segundo ele, mesmo com a pandemia, o Brasil, que é o terceiro maior produtor mundial de frutas, atrás da China e da Índia, aumentou em 6% as exportações de frutas, em geral, no ano passado, mas ele vê aumento no interesse por frutas orgânicas.
Ele contou que a Embrapa já validou sistemas produtivos orgânicos para banana para abacaxi, manga, maracujá e para e as spondías no Nordeste (umbu, cajazeiras, entre outras) e tem desenvolvido bananas e abacaxis orgânicos resistentes a doenças e formigas.
Segundo Vilarinhos, a produção e o consumo de orgânicos no mundo tem aumentado devido a expansão da demanda na Europa, nos Estados Unidos e na China. Desde o ano 2000, a média mundial de crescimento anual de produtos orgânicos no varejo tem sido de 11% , um indicador que expressa o dinamismo, principalmente quando comparadas às vendas de produtos convencionais.
“Nos próximos anos, a demanda internacional deve continuar crescendo, pois as pessoas associam os orgânicos a saúde, segurança alimentar e a um menor impacto ambiental da produção”, disse. Do ano 2000 até 2019, o aumento mundial de terras cultivadas com orgânicos foi de 381%, um salto de 14,98 milhões de ha para 72,28 milhões de ha. De acordo com o especialista, embora impactante, o número representa ainda 1,4% quando se compara à área destinada à agropecuária no mundo.A maior área de orgânico está na Oceania, especialmente na Austrália, com 35,88%, seguida da Europa com 16,52%.
O Brasil destina 1,28% à produção de orgânicos, atrás da Ásia, Estados Unidos, África e o resto da América Latina. Ásia e África, porém, são os que mais empregam mão de obra na produção de orgânicos. Em termos de produtividade, a Europa e a Ásia têm as maiores rentabilidade para orgânicos no varejo.
“O maior desafio está relacionado a custos, pois os processos de certificação são caros e não padronizados. Além disso, as cadeias são maiores, portanto, há mais gastos com energia e as conversões de produção convencional em orgânicos são lentas, o que mantém esse mercado, embora em expansão, em um nicho acessível em mercados mais elitistas”, ponderou.
Ele explicou que no Brasil o crescimento do mercado de orgânicos é mais lento devido a questões como custo da terra, logística, transporte e insumos. Além disso, pesquisas, e assistência técnica estão voltados majoritariamente para a agricultura convencional, que é o carro chefe da economia brasileira atualmente
Outro desafio é a falta de dados oficiais que dificulta o planejamento estratégico, mas em 2020 o Brasil registrou um aumento de 30% na produção de orgânicos, segundo a Associação para a Produção de Orgânicos (Organis) e gerou US$ 1 bilhão.
“O Brasil possui um processo de certificação participativa e políticas de compra de alimentos da agricultura familiar, o programa de alimentação escolar que são alvos de interesse de outros países, o que valoriza a produção local.
Sistemas alimentares
Em sua fala sobre sistemas alimentares em diferentes escalas, o holandês Walter de Boef, da Universidade e Centro de Pesquisa Wageningen, explicou porque embora a Holanda seja mais de 200 vezes menor do que o Brasil, os dois países estão entre os principais exportadores da agropecuária. Juntos, os dois países respondem por 15% das exportações do mundo. O Brasil é o líder nas exportações de soja e oleaginosas e a Holanda, de flores e lácteos.
“Nós desenvolvemos uma estrutura de sistemas alimentares, que só pode avançar quando há um vínculo muito forte com os “drivers”, ou seja, os fatores socioeconômicos e ambientais, que movimentam e impulsionam o sistema. Para nós, essa abordagem é muito importante porque combina metas objetivas com uma estrutura. Estamos trabalhando com perspectivas futuras agrícolas na Holanda e em vários países da África”, contou.
Segundo ele, a Holanda, assim como o Basil de Alysson Paolinelli, também contou com visionários como o ex-ministro da agricultura Sicco Mansholt que, no pós-segunda Guerra Mundial, foi responsável por aplicar uma forte política de autonomia de produção de grãos, quando todos os países da Europa enfrentavam fome, e também colaborou com a Política Agrícola Comum (PAC).
“A intensificação do uso de conhecimento na Holanda começou há 100, no início do século 20, quando a base agrícola da Holanda ficou frágil e caíram as exportações. Isso aconteceu na época da fundação da nossa universidade e é importante destacar que já nesta época havia uma política pública de especialização. Na minha família, meu avô foi o primeiro a trabalhar com horticultura e o país começou, pouco a pouco, com a produção de flores, agora somos quase 50% da produção de flores do mundo”, contou.
Para Boef, este ano, temos quatro eventos internacionais para discutir como será o perfil da agricultura no futuro e será uma oportunidade para a reflexão sobre as responsabilidades dos atuais líderes sobre como avançar para o futuro. Ele explicou que atualmente a Holanda coloca foco não apenas na segurança alimentar, mas também na alimentação e nutrição, e leva a sério as medidas de adaptação às mudanças climáticas, tema incorporado na vida política do país. “Estamos buscando formas de combinar floresta e vida animal. Na última semana, tivemos eleições nacionais e um dos temas em discussão foi o impacto de reduzir emissões de CO2 e de nitrogênio na agricultura e no setor pecuário. Outro elemento importante o “Green Deal”, a política pública europeia que, entre outras coisas, estabelece cadeias de valor mais curtas.